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Cálculo Contra HIV
(Tradução parcial do livro de infinite powers, Strogatz)
Em 1980 uma doença misteriosa começou a matar dezenas de milhares de pessoas por ano nos EUA e centenas de milhares no mundo. Ninguém sabia sua causa, porém seus efeitos eram claros. A doença enfraquecia severamente o sistema imunológico dos pacientes de tal forma que o individuo ficava vulnerável aos cânceres raros ou pneumonia e infecções graves. A morte pela doença era devagar e dolorosa. Os médicos chamaram essa doença de AIDS (Acquired immune deficieny syndrome). A pesquisa mostrou que sua causa é um vírus insidioso. O vírus atacava e infectava as células brancas do sangue (Células T) que são componentes principais do sistema imunológico. Como consequência, o corpo do paciente matava as células doentes e de certa forma o sistema imunológico estava suicidando!
A primeira droga para combater AIDS foi aprovada em 1987. Apesar de ter enfreado um pouco o sequestro das vidas, não era um medicamento muito efetivo. Uma outra classe de drogas denotadas por inibidores (protease inhibitors) apareceram em 1994.
Logo depois de que essa nova droga (protease inhibitors) foi disponibilizada, um grupo de pesquisa liderado por Dr. David Ho (um médico de Caltech, que sentia confortável com cálculo!) e um matemático imunologista, Alan Perelson, fez estudos que revolucionaram os pensamentos dos médicos da época sobre AIDS.
Antes dos trabalhos de Ho e Perelson, era sabido que a infecção (não tratada), tipicamente progredia em três etapas: primeira fase aguda de duração de algumas semanas, segunda fase crônica e paradoxalmente uma fase assintomática de até 10 anos e a última fase era fase terminal.
Na primeira fase, logo após ser infectado, o paciente apresentava sintomas como gripe, febre, dores de cabeça, efloresência (“Rash”) e despencava o número das células T no sangue. Normalmente num milímetro cúbico do sangue existem aproximadamente 1000 células T. Na primeira fase da doença este número chegava abaixo de 100. As células T ajudam o corpo a combater infecção. A carga viral no sangue inicialmente aumentava e depois diminuía a medida que o sistema imunológico combatia as células infectadas. Assim, os sintomas desapareciam e o paciente se sentia melhor.
No final da primeira fase, a carga viral estabilizava por alguns anos. Sem tratamento nesta fase as células T diminuíam lentamente. Eventualmente essa fase assintomática terminava e na terceira fase a carga viral abruptamente aumentava. Nesta última fase, qualquer câncer ou outras infecções e complicações de saúde acabavam com o paciente em 2 ou 3 anos.
A mistériosa fase longa e assintomática!
O que estava acontecendo? Será que o vírus de HIV era hibernado (dormente) na segunda fase?
Na ciência já são conhecidos outros vírus como Herpes entre outros que hibernam. A latência do HIV que era incógnita até então, ficou clara pelo trabalho de Ho e Perelson.
No estudo de 1995, eles deram aos pacientes inibidores de protease, não como tratamento, e sim como testes. Isto “cutucou” o corpo do paciente no seu estado estacionário e ajudou os pesquisadores a compreender a dinâmica da doença.
Eles descobriram que após cada tomada de inibidores, a carga viral diminuía exponencialmente. A taxa de decrescimento era incrível: a cada 2 dias a metade dos vírus era removida.
Cálculo diferencial ajudou o Perelson e Ho a modelar este decaimento exponencial e concluir resultados surpreendentes. Eles representaram a concentração de vírus no sangue como função t→latexV(t), onde t representa o tempo a partir do momento de administração de inibidores. Então, a partir dos dados empíricos eles concluíram que o melhor modelo para variação de V(t) seria
dVV=−cdt
Isto é, a taxa de remoção de virus é proporcional a carga do virus no momento t. O constante c>0 é a taxa de remoção (“clearance rate”).
A equação acima é uma equação diferencial. Ela relaciona a diferencial dV com V e dt. Usando teorema fundamental de cálculo e integrando ambos os lados, Perelson e Ho concluíram:
ln[V(t)V0]=−ct,
onde V0 é o valor da carga inicial do vírus. Consequentemente,
V(t)=V0e−ct, confirmando que neste modelo a carga do vírus decaí exponencialmente. Eles fizeram uma curva experimental com decaimento exponencial e estimaram o valor de c anteriormente desconhecido.
A equação diferencial acima poderia ser escrita de forma dVdt=−cV. Essa equação mostra o quão rápido a concentração do vírus decaí ao longo do tempo. Observem que c>0 e V>0 e portanto −cV<0 e isto mostra que a derivada da função t→V(t) é negativa e portanto é uma função decrescente.
Mais um comentário importante é que a taxa de decaimento de V é proporcional a V. Isto significa, à medida que V diminui, o decaimento também tem um ritmo mais lento. Intuitivamente é como drenar um tanque cheio de água. À medida que o tanque esvazia, a pressão da água diminui e portanto o fluxo da drenagem fica mais lento.
Até aqui não foi tão surpreendente, né?
Mais uma sacada genial!
Já com modelo de decaímento exponencial em mãos, Perelson e Ho cogitaram modificar o modelo da equação para entender a dinâmica sem administração de inibidores. Essa vez eles consideraram
dVdt=P−cV.
Nesse modelo P representa a taxa de produção de virus não inibido (um número misterioso e desconhecido anteriormente) e c é a taxa de remoção de vírus que ocorre pelo sistema imunológico. Perelson e Ho imaginaram que antes de administração de droga (protesease inhibitors), a cada momento, as células infectadas distribuíam novas células infectadas que por sua vez infectavam outras células e assim por diante. Esse potencial de “fogo violento” fazia com que HIV fosse tão perigoso.
Na fase assintomática, existiria um equilíbrio entre a produção de vírus e a sua remoção pelo sistema imunológico. No ponto de equilíbrio, o vírus está sendo produzido tão rápido quanto suprimido do corpo. Este deu uma intuição tremenda ao problema, mostrando como por longo tempo a carga viral poderia ficar estável. Considerando a comparação com tanque de água mencionada acima, é como se abríssemos a torneira para encher o tanque e abrir a torneira do tanque para drenar ao mesmo tempo.
Neste momento de equilíbrio, a concentração do vírus não varia, ou seja,
dVdt=0 e portanto o estado de equilíbrio corresponde a uma carga V0 satisfazendo a equação
P=cV0.
Perelson e Ho, usaram essa simples equação para estimar outro número que era desconhecido: o número de vírus removidos pelo sistema imune a cada dia. Acontece que este número foi estimado em um bilhão por dia! Este número deslumbrante significava que o sistema imune estava tendo um trabalho colossal. A cada dia um bilhão de vírus removidos e novo bilhão distribuídos no corpo.
(Pode se mostrar que as soluções da equação apresentado acima são de forma V(t)=ke−ct+Pc. Observe que limt→∞V(t)=Pc.)
Ho, Perelson e seu grupo de pesquisa continuaram os estudos e fizeram mais medições de carga viral. Essa vez eles coletaram os dados em intervalos mais curtos de tempo depois de administração de inibidores. Eles mediram a cada duas horas até 6 horas e depois a cada 6 horas até 2 dias e e uma vez por dia até 7 dias. Perelson fez uma equação diferencial mais refinada e para levar em conta número variável das células T infectadas também.
Após estes estudos, os pesquisadores obtiveram resultados mais impressionantes: eram cerca de 10 bilhões de vírus removidos por dia!
Além disto eles descobriram que células T tinham tempo de vida de 2 dias. Este tempo curtíssimo de vida das células T adicionou mais uma peça de quebra cabeça, dado que o esgotamento das células T é a marca desta doença (HIV).
Tudo isto mudou o jeito que os médicos tratavam os pacientes! Antes dos estudos de Ho e Perelson, os médicos não receitavam drogas no período em que julgavam o vírus estar em “hibernação”! A ideia era conservar o sistema imunológico do paciente até que HIV emergisse novamente (após 10 anos), achando que, caso contrário o vírus ficaria resistente a medicamento.
O trabalho de Ho e Perelson inverteu completamente o tratamento! Não havia hibernação!
O corpo e o vírus HIV estavam na luta diária durante todos os anos da suposta hibernação! O sistema imunológico de fato precisava de ajuda logo após os primeiros dias críticos. O vírus replicava e fazia mutações muito rapidamente. A matemática de Perelson deu uma estimativa de quantos medicamentos deveriam ser administrados em combinação para combater o HIV.
Considerando uma taxa de mutação de virus, tamanho de seu genoma, e número de vírus produzidos por dia, Perelson foi capaz de demonstrar que HIV estava gerando todas as possíveis mutações em cada base de seu genoma muitas vezes no mesmo dia. Já que uma única mutação poderia amortecer o efeito de uma única droga, a terapia por um único medicamento foi descartada. Então, administração de 2 drogas ao mesmo tempo foi cogitada; porém cálculos de Perelson mostraram que uma fração considerável de dupla mutação também estava ocorrendo. Então administração de cocktail de 3 drogas poderia ser uma melhor solução!
E foi isto que fizeram! Quando Ho e seus colegas testaram combinação de 3 drogas nos pacientes, os resultados foram impressionantes. O nível da carga do vírus caiu muito bem em duas semanas e em um mês, quase nenhum rastro de vírus!
Isto não quer dizer que o HIV foi erradicado. Os estudos logo em seguida mostraram que o vírus poderia voltar agressivamente se o paciente parasse a terapia. O problema é que HIV pode se esconder no corpo. Ele pode mentir! Pode ir aos cantos onde as drogas não penetram! Por isto é muito importante que os pacientes com HIV positivo, não pararem terapias com medicamentos.
Os resultados obtidos por Ho e Perelson, apesar de não erradicar a doença, deram condição de vida para muitas pessoas que antes não haviam esperança de viver!
Em 1996, Dr. Ho foi “Man of the Year” da revista americana TIMES. Em 2017, Perelson recebeu o grande prêmio “por sua profunda contribuição à teoria de imunologia, trazendo discernimento para área e salvando vidas.” Ele continuou com estudos, usando cálculo e equações diferenciais e trabalhando na hepatite C, um vírus que afeta cerca de 170 milhões no mundo e mata 350.000 a cada ano. Este vírus é causa principal de cirrose e câncer do fígado. Em 2014, com uso de trabalho matemático de Person, novos tratamentos para hepatite C foram desenvolvidos que são mais factíveis e mais simples. Incrivelmente funciona para quase todos os pacientes.