Mapas racionais na esfera de Riemann ====== Esfera de Riemann e Estrutura Complexa ====== Definimos a //esfera de Riemann// \(\overline{\mathbb{C}}\) como sendo o plano complexo estendido com um ponto no infinito, i.e. \(\overline{\mathbb{C}} := \mathbb{C}\cup\{\infty\}\), onde as vizinhanças de \(\infty\) são, por definição, complementos de conjuntos compactos do plano. Podemos visualizar este espaço como uma esfera através da //projeção estereográfica// \(\pi: \overline{\mathbb{C}}\to \mathbb{S}^2\), definida por \(\pi(\infty) = (0,0,1) := \mathbf{N}\) (o polo norte da esfera) e \(\pi(z) := x\), onde \(x\) é o único ponto da esfera pertencente ao segmento de reta que liga o polo norte ao ponto \(z \in \mathbb{C}\) (aqui, identificamos o plano complexo com o plano \(\{z = 0\}\) em \(\mathbb{R}^3\)); veja a figura abaixo: {{ :ebsd2021:projecao-estereografica-1.png?400 |}} Explicitamente, temos \[ \pi(z) = \left( \frac{2z}{1 + |z|^2}, \frac{-1 + |z|^2}{1 + |z|^2} \right) \] onde a primeira entrada é um ponto em \(\mathbb{C} = \mathbb{R}^2\) (ou seja, codifica as duas primeiras coordenadas desse ponto). Com essa identificação, podemos dotar a esfera de Riemann de uma estrutura de espaço métrico, e temos duas opções naturais de métrica (ambas equivalentes): a //métrica cordal// \(d_1\), obtida da distância euclidiana entre pontos de \(\mathbb{S}^2 \subset \mathbb{R}^3\); e a //métrica esférica// \(d_2\), obtida do comprimento de grandes círculos na esfera. Dessa forma, temos, para \(z, w \in \mathbb{C}\), \[ d_1(z, w) = \frac{2|z - w|}{\sqrt{1 + |z|^2}\sqrt{1 + |w|^2}} \ \text{ e } \ d_2(z, w) = \arccos\left( \frac{1 - |z - w|^2 + |z|^2|w|^2}{(1 + |z|^2)(1 + |w|^2)} \right) \] e, tomando \(w \to \infty\), também temos \[ d_1(z, \infty) = \frac{2}{\sqrt{1 + |z|^2}} \ \text{ e } \ d_2(z, \infty) = \arccos\left( \frac{-1 + |z|^2}{1 + |z|^2} \right) \] Além da estrutura de espaço métrico, podemos também dotar a esfera de Riemann com uma estrutura complexa (fazendo dela uma superfície de Riemann). Pondo \(U_1 := \mathbb{C}\) e \(U_2 := \overline{\mathbb{C}}\setminus \{0\}\), definimos as cartas \[ \begin{matrix} \phi_1: & U_1 \to \mathbb{C} & & \phi_2: & U_2 \to \mathbb{C} \\ & z \mapsto z & & & z \mapsto \frac{1}{z} \end{matrix} \] Note que, para \(z \in U_1\cap U_2 = \mathbb{C}\setminus\{0\}\), os mapas de transição \(\phi_1^{-1}\circ \phi_2(z) = 1/z\) e \(\phi_2\circ \phi_1^{-1}(z) = 1/z\) são holomorfos, definindo assim uma estrutura complexa em \(\overline{\mathbb{C}}\). Essa estrutura nos permite falar então de funções holomorfas \(f:\overline{\mathbb{C}} \to \overline{\mathbb{C}}\). Isto se traduz no seguinte: \(f\) é holomorfa em \(z_0 \in \overline{\mathbb{C}}\) se - (Caso \(z_0, f(z_0) \in \mathbb{C}\)): é holomorfa em \(z_0\) so sentido usual; - (Caso \(z_0 \in \mathbb{C}\) e \(f(z_0) = \infty\)): a função \(z \mapsto 1/f(z)\) é holomorfa em \(z_0\) no sentido usual; - (Caso \(z_0 = \infty\) e \(f(z_0) \in \mathbb{C}\)): a função \(z \mapsto f(1/z)\) é holomorfa em \(0\) no sentido usual; - (Caso \(z_0 = f(z_0) = \infty\)): a função \(z \mapsto 1/f(1/z)\) é holomorfa em \(0\) no sentido usual. ====== Mapas Holomorfos na Esfera de Riemann ====== Temos uma simples caracterização dos mapas holomorfos da esfera de Riemann nela mesma: **Teorema 1:** Um mapa \(f: \overline{\mathbb{C}} \to \overline{\mathbb{C}}\) é holomorfo se e somente se é racional, i.e. \(f(z) = P(z)/Q(z)\) para polinômios \(P, Q\). //Demonstração//: Por um lado, se \(f\) é racional, claramente é holomorfa, pelos critérios da seção anterior. Por outro, se \(f\) é holomorfa, podemos assumir que \(f(\infty) = \infty\); de fato, se \(f(\infty) = z_0\), basta trocarmos \(f\) por \(z \mapsto 1/(f(z) - z_0)\), e essa nova função é racional se e só se \(f\) também o é. Desta forma, podemos restringir ao plano \(f|_{\mathbb{C}}: \mathbb{C} \to \overline{\mathbb{C}}\) e temos uma quantidade finita de pólos (pelo Princípio da Identidade), digamos \(z_1, \dots, z_k\). Usando a estrutura complexa da esfera de Riemann, vemos que existem inteiros \(m_1, \dots, m_k \geq 1\) tais que a função \[ z \mapsto (z - z_i)^{m_i}f(z) \] não tem polo perto de \(z_i\), para todo \(i = 1, \dots, k\). Definindo \[ Q(z) := \prod_{i=1}^k{ (z - z_i)^{m_i} } \] a função \(P(z) := Q(z)f(z)\) é holomorfa do plano no plano --- i.e. inteira. Além disso, colocando \(P(\infty) = \infty\), temos uma extensão de \(P\) para a esfera. Pela estrutura complexa, isso significa que o mapa \(1/P(1/z)\) é holomorfo em torno de \(0\), e que manda \(0\) em \(0\); em particular, \(1/P(1/z) = z^dh(z)\) perto de \(0\), onde \(d \geq 1\) e \(h\) é holomorfa e não se anula. Portanto, para \(z\) "perto de infinito" (i.e. grande o suficiente), vale que \[ P(z) = \frac{z^d}{h\left( \frac{1}{z} \right)} \implies |P(z)| \leq C|z|^d \] para alguma constante \(C > 0\) independente de \(z\). Agora aplicamos o mesmo racioncínio do Teorema de Liouville: tomando \(R > 0\) grande o suficiente e \(C_R\) o círculo de raio \(R\), temos \[ |P^{(d+1)}(z)| = \left| \frac{(d+1)!}{2\pi i}\int_{C_R}{ \frac{P(\zeta)}{(\zeta - z)^{d+2}}d\zeta } \right| \leq \frac{(d+1)!}{2\pi}\frac{CR^d}{(R - |z|)^{d+2}}2\pi R \xrightarrow[R\to\infty]{} 0 \] e portanto \(P^{(d+1)} \equiv 0\), o que implica que \(P\) é um polinômio. Finalmente, isto nos conclui que \(f(z) = P(z)/Q(z)\), como queríamos demonstrar. ====== Automorfismos da Esfera de Riemann ====== Um //automorfismo// de um aberto \(U \subseteq \overline{\mathbb{C}}\) é um mapa holomorfo invertível \(\phi: U \to U\). Com o resultado anterior, podemos facilmente classificar os automorfismos da esfera. **Teorema 2:** Um mapa \(\phi: \overline{\mathbb{C}} \to \overline{\mathbb{C}}\) é um automorfismo se e só se é da forma \[ \phi(z) = \frac{az + b}{cz + d} \] com \(ad - bc \neq 0\). //Demonstração//: Sabemos que um mapa holomorfo da esfera nela mesma é racional, e podemos escrever \(\phi(z) = P(z)/Q(z)\). Como os zeros de \(\phi\) são os zeros de \(P\) e os pólos de \(\phi\) são os zeros de \(Q\), necessariamente \(\deg P \leq 1\) e \(\deg Q \leq 1\) (caso contrário, o mapa não seria invertível); note que é possível o grau de um desses polinômios ser \(0\), como no caso de \(\phi(z) = 1/z\), por exemplo. Escrevemos então \[ \phi(z) = \frac{az + b}{cz + d} \] com \(a, b, c, d \in \mathbb{C}\). Para entender a condição nos coeficientes, primeiro vemos que um mapa dessa forma pode ser visto como uma ação de \(M_2(\mathbb{C})\), espaço de matrizes \(2\times 2\) a coeficientes complexos na esfera; de fato, se pomos \[ \begin{pmatrix} a & b \\ c & d \end{pmatrix}\cdot z := \frac{az + b}{cz + d} \] podemos verificar que \[ \begin{pmatrix} a & b \\ c & d \end{pmatrix}\cdot\left[ \begin{pmatrix} a' & b' \\ c' & d' \end{pmatrix}\cdot z \right] = \left[ \begin{pmatrix} a & b \\ c & d \end{pmatrix}\cdot \begin{pmatrix} a' & b' \\ c' & d' \end{pmatrix} \right]\cdot z \ \ \text{ e } \ \ \begin{pmatrix} 1 & 0 \\ 0 & 1 \end{pmatrix}\cdot z = z. \] Dessa forma, \(\phi\) é invertível se e só se a matriz que o representa em \(M_2(\mathbb{C})\) é invertível, o que ocorre se e só se seu determinante é diferente de \(0\). Verificamos assim que os automorfismos de \(\overline{\mathbb{C}}\) são representados por matrizes em \(GL_2(\mathbb{C})\); note que a ação de uma matriz \(\begin{pmatrix} a & b \\ c & d \end{pmatrix}\) coincide com a ação da matriz \(\begin{pmatrix} \lambda a & \lambda b \\ \lambda c & \lambda d \end{pmatrix}\) para qualquer \(\lambda \in \mathbb{C}\setminus \{0\}\), e portanto podemos sempre assumir que o representante está no grupo \(SL_2(\mathbb{C})\), de matrizes com determinante \(1\). Como ainda vale que as ações de \(\text{Id}\) e \(-\text{Id}\) coincidem, temos que o grupo de automorfismos de \(\overline{\mathbb{C}}\) é dado por \[ \text{Aut}(\overline{\mathbb{C}}) = \frac{SL_2(\mathbb{C})}{\{\text{Id} = -\text{Id}\}} = PSL_2(\mathbb{C}). \] Os mapas de \(PSL_2(\mathbb{C})\) são chamados de //transformações de Möbius//. ====== Propriedades de Transformações de Möbius ====== Temos duas importantes propriedades de transformações de Möbius: **Proposição 1:** Transformações de Möbius levam círculos em círculos. Note que estamos falando de círculos na esfera de Riemann; por exemplo, o mapa \(h(z) = i(1 + z)/(1 - z)\) manda o círculo unitário \(\mathbb{S^1}\) na reta real estendida \(\mathbb{R}\cup \{\infty\}\). **Proposição 2:** Dadas duas triplas de pontos \((a_0, a_1, a_\infty)\) e \((b_0, b_1, b_\infty)\), existe uma única transformação de Möbius \(\phi\) com \[ \phi(a_0) = b_0 \quad \quad \phi(a_1) = b_1 \quad \quad \phi(a_\infty) = a_\infty. \] //Demonstração//: Para a existência, basta construir uma transformação de Möbius com \(T(a_0) = 0, T(a_1) = 1, T(a_\infty) = \infty\). Podemos então tomar \[ T(z) := \frac{a_1 - a_\infty}{a_1 - a_0}\frac{z - a_0}{z - a_\infty}. \] Para a unicidade, basta provarmos que uma transformação de Möbius que fixa \(0, 1\) e \(\infty\) é a identidade. De fato, se temos \(T(z) = (az + b)/(cz + d)\), então - \(T(0) = 0 \iff b = 0\); - \(T(\infty) = \infty \iff c = 0\); - \(T(1) = 1 \iff a + b = c + d \implies a = d\). Dessa forma, a matriz associada a \(T\) é um múltiplo da identidade, o que em \(PSL_2(\mathbb{C})\) significa que ela está na mesma classe de equivalência da identidade, concluindo que \(T(z) = z\). ~~DISCUSSIONS~~